24-04-12
Que a realidade ultrapassa sempre a ficção, já eu sabia. Aqui, é diariamente.
Fomos finalmente de chapa para a escola, esta primeira vez acompanhadas pelo Clayton, um dos aspirantes a frade, de 23 anos, que também mora cá em Jangamo. Por 15 meticais, cerca de 40 cêntimos, na viagem Jangamo-Cumbana, temos direito a estofo estampado de pele de leopardo, “mamãs” que levam num alguidar o peixe para vender, música ritmada a bombar dum cd pirateado e o esquemas do manager (!) do chapa para conseguir enfiar mais gente por centímetro quadrado em cada paragem. Chegar ao destino é secundário! A verdade é que vai quase porta-a-porta já que pára praticamente onde lhe pedimos.
Na escola, estivemos a tirar fotografias à Irmã Teresa para o seu cd dos 50 anos que e estivemos com os miúdos. Voltei a reforçar “A saia da Carolina”, brincámos à apanhada, contámos histórias e dançámos. Muito! Eles batem-me aos pontos, obviamente. O mais importante é mesmo dar carinho aos miúdos, eles sentirem que nós estamos ali para eles, puxar para que falem e tentar ensinar alguma coisa enquanto nos divertimos. Isto porque mesmo os “mais velhos”, de cinco anos, só se espera que acabem o ano a aprender a escrever o nome, o abecedário, desenhar, os números e pouco mais. É muito complicado se não há apoio em casa por parte dos pais… A língua que falam em casa pode não ser português, alguns entram só para aqui com 5 anos e esta até é das melhores escolas da zona, mas só consegue levar cerca de 80 alunos.
De tarde, fomos às compras da casa com o Frei Filipe e tratar de registar o cartão da Vodacom para pôr numa pen de modo a termos internet. A vila (ainda) não é sítio que me agrade particularmente, ainda está muito fora da minha zona de conforto, mas isso só faz com que me obrigue a mim mesma a lidar com isso. Isto porque é uma enorme confusão, não há sistema de lixo, o mercado é o salve-se quem puder, e há sempre demasiada informação para processar. Sem mencionar que, no meio das centenas de pessoas que estão sempre em todo o lado, 99% delas param tudo o que estão a fazer para olhar para nós. Os primeiros dois segundos, com cara de quem está perante um ser nunca antes visto mas que, na maior parte das vezes, se transforma num sorriso quando acenamos e vêm que falamos português. Havemos de nos habituar. As lojas parecem tiradas de um Portugal nos anos 50, com caixas registadoras quase retro, com produtos como o restaurador Olex, e uma industrialização esteticamente pouco agradável liderada por chineses e indianos, que são sempre os donos das lojas com mais gente, infelizmente.
Foi um dia para conhecer melhor os que nos rodeiam, especialmente a Irmã Teresa e o Frei Filipe. Contaram-nos histórias que eu nem consigo imaginar. Histórias de guerra, de solidão, exclusão e medo que não desejo nem ao meu pior inimigo. O Frei Filipe deixou a família que vivia, literalmente, no mato e vestida com folhas de árvore, quando foi para cumprir o serviço militar obrigatório. Lutou e viu morrer, e esteve nove anos sem qualquer tipo de contacto com a família, sem saber nem eles saberem notícia alguma uns dos outros. Falou-nos ainda da História de Moçambique e das condições actuais políticas e sociais que, aos olhos dele, são muito tristes. Há muita corrupção, ao ter o mesmo partido a liderar há não sei quantos anos, a Frelimo, que é uma máfia pura e dura. A Irmã Teresa, esteve em Angola, também durante a guerra, e viu destruírem as missões que tinham construído, escolas, hospitais e, depois do primeiro tiroteio à porta de casa, tentou voltar para Portugal. Não a deixaram, ela teve que lá ficar e só diz que espera nunca ter de passar pelo mesmo.
É o que mais me tem impressionado e me faz sentir que estou noutro mundo, quando é inútil tentar imaginar o passado da maior parte das pessoas que encontro. Desde os miúdos da escolinha até às mamãs que trabalham cá em casa, todos têm uma história para contar quando já começamos a ter confiança para que ela venha ao de cima. A mim resta-me ouvir e admirá-los infinitamente.
Que bom Carolina por partilhares esta tua experiência connosco. Bem hajas. MJM
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