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quinta-feira, 31 de maio de 2012

Moçambique #30


16-05-2012

Chegado o dia de mudança para outras paragens. Fizemos a mala ao acordar e fomos para a escolinha, carregadas com sacos, no chapa, com os presentes para eles. Conseguimos chegar a tempo o lanchinho a meio da manhã e distribuímos o bolo e sumos que tínhamos preparado na tarde anterior. Não sobrou nada!

As titias já deviam ter dito que ía ser o nosso último dia pois alguns estavam com uma cara muito tristonha. No recreio, vieram-se sentar ao meu colo uns que nunca o tinham feito, dar-me a mão e fazer festinhas e até vi os dentes de uns que nunca sorriam quando lhes fazia cócegas. Na sala, olhei para cada um deles com olhos de ver e para tentar decorar cada uma destas carinhas doces. Treinaram escrever os números de um a dez e eu não conseguia deixar de estar feliz por estar ali com eles, apesar de alguns números, na sua perspectiva, serem exactamente o mesmo que circunferências e outras formas geométricas mais indefinidas.
No final, distribuí os saquinhos e, claro, o que gostaram mais do que estava lá dentro foram as pipocas!

Mas a falta de uma cara na sala fazia-se sentir, dum menino chamado Cléber que é o que fala mais, dança mais, canta mais e conta as histórias mais imaginativas. Soube que, no dia anterior, pouco depois de termos saído para a Maxixe, ele tinha sofrido um ataque epiléptico ali mesmo. O amigo do lado tinha percebido que ele não estava a brincar e conseguiu amparar a queda e o Cléber acabou por não se magoar. A titia disse que fez o que pôde, no seu estado de pânico controlado, foi chamar as outras e nada mais puderam fazer do que ficar ali com ele até recuperar. Ainda foram tentar chamar o pai à escola secundária, que não estava, mas acabou por chegar, eventualmente, e levaram-no para o hospital. Amanhã telefono à titia a saber se há notícias, não consegui deixar de pensar nele o tempo todo.

Almoçámos com as Irmãs, as chamuças feitas no dia anterior, e conversámos muito sobre o que a Irmã Teresa tinha feito pelos meninos e meninas de Cumbana. "Bebé que não chora, não mama" e a Irmã Teresa faz-se ouvir muito bem! Acho imensa graça ela a dizer que já mandou cartas para toda a gente importante em Portugal, a mostrar este projecto, incluindo deputados e muitas, muitas equipas de futebol. Também costuma enviar fotografias, mas que não manda como as outras fazem, com "os meninos sujinhos, porque cá eu esforço-me para que eles não andem assim!". Aconselhámos enviar para o Cristiano Ronaldo, que não conhecia. Quem tinha pago a maior parte da escolinha tinha sido um espanhol e quem também está muito empenhado é um senhor que trabalha no Naval. A descrição dela da visita à Figueira da Foz, a estadia num hotel com piscina e a ida "de avião" da Figueira ao Porto, como agradecimento do senhor pelo trabalho que tem feito, é uma pérola.

Ainda tivemos que ir à Maxixe levantar dinheiro, que a Joana queria já deixá-lo à escolinha, e acabámos por nos atrasar tendo o Frei Abel que ir à sua vida e ficou a partida adiada para amanhã de manhã.

Acabou por calhar bem porque aproveitámos o tempo para descansar, que estávamos mortas, para escrever, organizar e fazer backups de fotografias para que tudo esteja preparado para a nova aventura.

Estive a ver um panfleto turístico no carro da Irmã e fiquei impressionada com os números moçambicanos. Para o tamanho que tem este país, 800 mil km2 , só tem 20 milhões de pessoas das quais 80% vivem da agricultura de subsistência, só um quarto sabe falar português, e mais de metade tem menos de 14 anos! Impressionou-me muito. É um país com todo o potencial para ser gigante mas também me tenho andado a aperceber que são os próprios moçambicanos que têm que fazer mexer o país, não são ajudas externas. Sinto que eles prezam muito a sua independência mas que muitos também são nostálgicos e gostariam que alguém começasse a investir num futuro melhor para todos.

Moçambique #29


15-05-2012

Na véspera da partida, foi o dia em que mais me senti em casa. Um mês foi o tempo mais acertado para cá estarmos.

O dia começou em alegria, ao sair do chapa, a rasgar as calças com um ferro saído, mesmo no meio do rabo, para risada dos miúdos que estavam perto. A capolana que trazia como lenço à cabeça foi a salva-vergonhas! Combinamos ir à Maxixe com a Irmã Teresa, para ir ver de capolanas e comprar material escolar que ficasse na escolinha. Mas, sobretudo e muito importante, estarmos com a Irmã, como num passeio de amigas. Ela, de vez em quando, menciona que é muito bom ter-nos cá para matar saudades dos portugueses. É algo em que, se calhar, não se pensa muito, afinal falamos todos a mesma língua mas as culturas, hábitos e mesmo maneira de falar não deixam de ter as suas diferenças. Ela gosta de perguntar pelas nossas vidas, falar de terriolas portuguesas, Mirandela incluída, com as suas "duas pontes iluminadas e um rio, bem bonitos!" e saber notícias de Portugal (mas também faz questão de se manter informada cá e as frases "Eu bem sei como é lá agora... as pessoas não querem ser gordas, não é?" são fruto dessa investigação profunda). Para além de que, quando a ouço, estou maioritariamente a rir, sem intenção da parte dela. Tudo o que a nossa santa diz é com o ar mais sério, mas não é possível encará-la como merece quando é constante o calibre das suas saídas, tal como aquela em que disse que "logo em nova já tinha pensado muito em seguir a vida religiosa, batalhei com os meus pais, disse que queria ir para a casa das Irmãs, eles não queriam, mas decidi-me logo que era isto o meu sonho" e, ao perguntarmos quando foi esse momento-chave, responde "Ah, aos doze anos" ou outras como "Os meus irmãos quando estão com problemas pedem-me Oh Teresa, reza aí por nós, mas, oh, eu tenho mais que fazer" e "Esta vida não é uma cantiga, sabia? Não veem para religiosas só as pasmadinhas!"

Na Maxixe, comprámos também ingredientes para fazer bolo de iogurte em quantidade para mais de 80 crianças e para as titias. A tarde foi passada, consequentemente, na cozinha, na companhia das Irmãs, a labutar, conversar e trocar receitas. Como só cabia um bolo de cada vez no forno a gás e fizemos quatro, houve tempo para tudo. São estes momentos que tenho a certeza que vou levar comigo, quando já parece que as nossas tardes nunca foram diferentes disto, talvez por semelhança aquelas passadas com a minha mãe e avó.

Um dos bolos que fizemos foi de chocolate, para trazer aos Freis e à Dona Rosária, que desapareceu todo no fim do jantar! Aí, ouvimos mais mil e uma histórias vivamente encenadas por parte do Frei Filipe, bebemos a dose certa de preta (a melhor prevenção para a malária!), lamentámos deixar "os fradinhos pobrinhos outra vez sozinhos" (nas palavras dos próprios), e trocámos lembranças preparadas com a maior imaginação possível. Para acabar, também em beleza, faltou a electricidade, que funciona como os telemóveis, recarregando-se, e tivemos um fim de noite à luz das velas.

Moçambique #28


14-05-2012

Já ando a guardar uma "mental picture" o melhor que posso, como diz uma música, dos meninos da escolinha. Com abracinhos apertados e desajeitados deles, as conversas muito vivas mas sem nexo, os olhares tímidos a pedir colo e miminhos, o irem ao quadro sem fazerem ideia do que lá estao a fazer, o bom-dia gritado, a constante partilha de bolachas, de pão, sumo e, consequentemente, haver sempre algum doente, o quanto se conseguem entreter com ramos de árvore, bichos, latas usadas e os nossos cabelos...
Hoje tentei que, a partir das historinhas que eles costumam contar, escrevêssemos uma grande no quadro, com um mínimo de lógica entre as frases. Não sei se perceberam o que era para fazer mas eu ia pegando em bocados das historinhas deles e juntava para compôr a maior. "Era uma vez, um macaco, que foi no mercado, que roubou banana, laranja, pipoca, arroz" é sempre um hit mas a minha personagem favorita tem que ser um tal de "pato-patola".

Sinto-me muito mimada nestes últimos dias! Tivemos já um presente dos miúdos, que o entregaram a cantar, não podia ter sido mais querido. Já o tínhamos escolhido com a Irmã Teresa, eu adorei uma peneira colorida, típica, claro, feita com folha de coqueiro. As Irmãs também fizeram questão de nos oferecer uma capolana linda e de um tecido óptimo acompanhado dum postal com uma mensagem que aquece qualquer coração. Esta malta trata-nos demasiado bem.

Sendo segunda-feira, o hospital estava muito movimentado, mais ainda sem a Irmã Adriana lá. Adiantámos muito na parte das consultas, a pesar bebés, fazer as suas fichas e das mamãs, a medir e ouvir barrigas e, a tão necessária mas entediante tarefa, de fazer saquinhos de comprimidos.

O serão foi passado à conversa com o Frei Filipe. Uma lição reforçada hoje foi a dos ritos de iniciação por que costumavam passar os meninos e meninas para se tornarem homens e mulheres, respectivamente. O Frei chegou a fazer isso, ainda se faz, e teve que estar 45 dias no mato, longe de tudo e todos, com circuncisão e actividades muito pouco higiénicas incluídas. Lá, eram ensinados a comportar-se em comunidade, a saber como enterrar um falecido, a tratar do lar, e aí se tornavam adultos. Claro que isso criava um excesso de natalidade, quando libertavam os recentes homens e mulheres depois desses dias todos a serem incitados a constituir logo família, mesmo tendo 13 anos!

Deve-se imaginar o Frei Filipe como um homem de metro e oitenta, com uma barriga quase de meio metro, mais negro é impossível, e com umas mãos enormes sendo depois o ser mais querido à face da terra, que o que mais gosta no mundo é das suas plantas e do seu jardim. Hoje ele dizia, com uma expressão seriíssima, que o que curava tudo era o nosso próprio chichi. Que o bispo lhe tinha dito, quando ele estava mal de dentes, que bochechasse o dito logo de manhã, que era o mais potente e eficaz, e ele jura que nunca mais lhe doeram! Também serve misturado com areia para sugar o veneno duma picada de cobra e que é tudo preconceito, não dá náuseas nenhumas, mesmo engolindo! O que eu me rio. Até com a maior das desgraças, eles cá em casa adoram rir-se a alto e bom som, deve ser algum modo de lidar com o sofrimento que parece resultar. Um exemplo muito concreto: no tempo da guerra, houve aqui um senhor a quem ceifaram aquilo que faz dele um homem à catanada e que "ficou sem nada!". Nós, tentamos ficar com um ar muito sério, e eles desatam a rir a dizer que, desde então, o senhor decidiu que mais valia andar de saias e ser mulher. Hoje, ele passou cá por casa ao jantar e chamaram-no a dizer "Meninas, este aqui é o tal Savana, o homem que anda de saias!" e continuaram a rir-se todos, Savana incluída/o!

Moçambique #27


13-05-2012

Domingo + dia 13 de Maio + Paróquia de Nossa Senhora de Fátima de Jangamo + festa moçambicana = bomba explosiva!

O dia não começou de feição com a mota do Frei Anselmo a expelir a câmara de ar para a berma da estrada e o nosso companheiro Land Cruiser ficar sem pneu, na madrugada mais importante do ano para a paróquia. Mas o que tem que ser tem muita força e, como diz o Frei Anselmo, ele nunca está atrasado para a missa porque esta não começa sem ele. Assim, um atraso de 45 minutos é irrelevante. As zonas aqui perto estavam todas presentes, para além dos músicos e instrumentos habituais havia três guitarristas e um sistema de som eléctrico, já que a missa era ao ar livre para umas quatrocentas pessoas. Os cânticos já não me saiem da cabeça e ando a aprender os passos de dança que as "manas" mais gostam - com missa de três horas dá tempo para isto e muito mais. Hoje até o Frei Anselmo dançou enquanto fazia a homilía! A seguir, houve almoço oferecido e preparado com muita dedicação e tempo pela comunidade, com direito a carapau, caril de amendoim, arroz, xima, guisado de galinha, frango no churrasco, batatas fritas, salada russa, salada de repolho, laranjas e papaia. A mesa não podia estar mais completa com todas as Irmãs, Freis, animadores e coordenadores da comunidade, mamãs e papás.

Na hora do descanso, a Sofia e a Joana finalmente gravaram os cds para a Irmã que não podia ter ficado mais contente. Eu aproveitei para dormir e preparar-me para a nossa rave de despedida. Começámos logo às quinze, como eles dizem, para só acabar às dezanove e trinta! Cozinhámos para 15 pessoas, e ainda sobrou muita comida. A ementa, típica dum jantar de amigos lisboeta: pão torrado com pasta de atum, esparguete à bolonhesa, cheesecake e bolo de iogurte. Tudo feito com muito amor, como mandam as melhores receitas e muito saboroso! Ficámos muito felizes que tivesse saído tudo como queríamos, é uma maneira simples de tentar agradecer tudo o que têm feito por nós. E deu para matar o desejo de comida mais europeia!

Mas, para mim, o melhor estava reservado para o fim. As aspirantes e a Irmã Arminda tinham preparado um show para o final do jantar, com chapéus de palha e batuque incluídos. Cantaram músicas sobre missionárias, de despedida, para dançarmos todos, em guitonga, e outras inventaram e escreveram letras a gozar com a maneira como nós pilamos a mandioca, por exemplo (parecemos umas velhas com artroses enquanto elas fazem tremer o chão e abrem um buraco na terra, tal é a força). É esta alegria que é contagiante e todo o cansaço que se fazia sentir foi posto para trás das costas e renovado a cada bater de palmas.

O Frei Filipe discursou em tom emotivo sobre a nossa estadia cá mas, a meu ver e sem falsas modéstias, quase demasiado bondoso. Agradece muito o termos vindo visitá-los, trabalhado cá, que depende das nossas notícias receberem outras missionárias e até pede desculpa por tudo o que tenha corrido menos bem, enquanto sei que eu é nunca vou conseguir retribuir os braços abertos com que nos acolheram e o que nos deram, privando-se eles de determinadas coisas. Nas palavras dele, "o moçambicano alegra-se em dar e, mesmo na pobreza, dá a sua alegria!". Que este espírito se conserve e, como lhe disse a ele, que eu possa levar metade desse espírito comigo, já vai fazer toda a diferença. Vou, com certeza, anunciar a todos os interessados que este local é um lar mesmo tão longe do berço, que as suas pessoas são trabalhadoras incansáveis e que só pretendem o bem-estar das que as rodeiam sacrificando o seu querer, e que nunca lhes falta um sorriso tranquilo e genuíno.

Bem hajam.

Moçambique #26


12-05-2012

Saímos logo às sete e meia para fazer as compras para o jantar de amanhã. Pode parecer cedo a quem ainda se deixe iludir pelo ritmo moçambicano.

Só precisávamos de ir trocar dinheiro e a uma loja com muita variedade na Maxixe, a Tauros, para comprar os ingredientes. Mas uma manhã de Sábado com o Frei Filipe claro que tinha de incluir uma paragem para um segundo mata-bicho e conhecer a casa da Dona Rosária, ir à loja de tintas, visitar uma casa de Irmãs para trazer umas flores para o jardim, visitar outras Irmãs para trazer outro tipo de flores para o jardim... e depois sim, compras durante uma hora e nisto são horas de almoço. Conseguimos tudo o que era preciso, até uma mozzarela rija e queijo-creme! A carne picada vai ser de hambúrgueres esmagados e, e!

Ao fim da tarde, o começo das festas de Nossa Senhora, com uma missa e uma procissão muito sentidas. Fomos, já escuro e de velas em mão, pela estrada até ao hospital e voltámos, a rezar o terço em português e guitonga, intercalados, e a cantar. Com este céu abismal e as músicas que se costumam cantar em Fátima, pode-se dizer que foi, no mínimo, inesquecível.

Moçambique #24


10-05-2012 #24

A nossa partida foi adiada para daqui a uma semana. Hoje já era para levarmos os presentes de despedida aos miúdos mas parece que ainda é cedo. O Frei Abel, que nos iria receber em Homoíne, teve que ir a Maputo e o Frei Viegas, o responsável da missão, está em Portugal. É da maneira que temos mais tempo para preparar o nosso jantarinho farewell que prevemos ser de tostas com pasta de atum, esparguete à bolonhesa, cheesecake e bolo de iogurte. Com o tempo que tudo costuma demorar, é bom que o vamos já fazendo.

O dia foi já o habitual, se é que isto se pode dizer. Na escolinha, levei uns recortes duma revista para eles colarem na folha e desenharem à volta qualquer coisa que tivesse a ver com a imagem. Só um ou outro é que o fizeram, é difícil tentar passar a mensagem, a não ser que digamos exactamente o que é preciso fazer. Uns decidiram pintar tudo à volta da imagem duma só cor, outros fazer uma arte mais abstracta, e outros decidiram ainda desenhar carros, bananas e os seus items de eleição. Numa expressão que eles próprios usam "Saiu errado porque esse aí depressou!".

O hospital estava literalmente vazio, logo à uma da tarde, foi fenómeno do Entroncamento. Por isso, bota em cima mais três horas de embalar comprimidos e fazer pensos.

A Irmã continua sem dormir por causa do vídeo dos 50 anos, que teima em não reproduzir a música durante a apresentação, mas ainda não desistimos de a fazer feliz. Hoje também nos veio mostrar três capolanas lindas, dizendo que seria o nosso presente de despedida mas queria ter a certeza que nós gostávamos e se era preciso ir trocar! Mas que não contássemos nada às outras Irmãs.

Cá por casa, escrevemos um e-mail ao Frei Vítor, ajudámos os Freis a fazer uns cadernos de cânticos, lemos, vimos DVD's sobre a vida selvagem e danças tradicionais com o Frei Filipe, e provámos mais uma especialidade local, a Xiquinha. É uma espécie de migas mas com mandioca cozida, amendoim e cacana - umas folhas selvagens de sabor parecido com espinafre mas dez vezes mais amargas e que ficam a fazer-se sentir no fundo da boca ainda por mais cinco minutos a seguir a serem comidas!

É assim, a vida no campo.

Moçambique #23


09-05-12

Já está tudo preparado para a semi-despedida amanhã dos miúdos, em que vamos entregar os saquinhos-presente. Hoje deixei uma dedicatória muito simples a cada um no seu caderninho. Pergunto-me se vou ver algum deles mais alguma vez ou ter qualquer notícia? Não que isso provoque em mim qualquer sentimento negativo, já sabia que assim o era, estou apenas curiosa...

Os Freis queriam muito que visitássemos a missão em Mucumbi, a duas horas daqui que, para eles, não é nada longe. Apesar de ser a última semana aqui em Jangamo e querer estar o máximo de tempo por estas bandas, gostei muito de lá ir. Uma hora até Inharrime e meter depois uns 40 quilómetros para dentro do mato, em estradas (ainda) mais acidentadas que o habitual, que equivale a mais sessenta minutos de solavancos. Desta vez, com quatro pessoas atrás! Lá chegados, a entrada é triunfal com um caminho comprido ladeado por coqueiros gigantes em linha recta e, ao fundo, a igreja em branco e azul, imaculada. As fotografias falarão melhor.

É uma missão de início do século passado, afastada de tudo e todos, mas que conseguiu agregar uma mini-comunidade. É composta por uma escola secundária, maternidade, clínica de saúde, refeitório e alojamento para os que lá trabalham e para os estudantes. Está bem conservada e tem muitos alunos, tendo retomado actividade a seguir à guerra civil.

Eu percebo que os Freis nos queiram dar a conhecer outros sítios aqui à volta. Eles sentem que as outras missões são apenas mais divisões, que também merecem atenção, de uma enorme casa que são os Franciscanos em Moçambique. É muito interessante para nós e cada missão sente que não está esquecida, que há uma posssibilidade de espalharmos mensagem e vir mais gente para ajudar. Este era mesmo um sítio isolado mas que deve proporcionar uma experiência inesquecível com tanto trabalho concentrado, com o mato e o rio Inharrime à vista.

Que o Frei Filipe é inseparável da sua moringa, a planta seca que "faz bem a tudo", já nós sabíamos. Desconhecíamos era o seu grau de conhecimento e fé em tudo o que é medicina natural. Hoje ouvimos falar de outros pózinhos milagrosos que ele insiste que experimentemos. Passando a citar: moringa é obrigatório levarmos, podemos apanhar aqui na vizinha e secar ou comprar na farmácia quando formos ao Chimoio; Aloé, uma mistura de mel com folhas de aloé que ele jura que umas Irmãs usaram numa senhora com sida e que ela ficou curada e que a nós também há-de fazer bem; e Ngoka, umas saquetas que se importam da Tanzânia e que curam mais de cem doenças, cancros incluídos - tomou quando tinha problemas de tensão e "ficou sem ela"; e quando estava com grau um de hemorróidas e os médicos disseram que devia esperar até ao grau três para ser operado mas tomou Ngoka e já não tinha mais a dita cuja. Isto tudo à mesa, entre muita risada, mas a promessa que íamos tomar pelo menos um deles. À noite, mostrou-nos um livro intitulado "A farmácia natural" escrito por uma Irmã e que, resumindo, também tem cura para tudo. Vou fotocopiar, mal não há-de fazer.

A vastidão desta terra, as nuvens perfeitas e o tamanho das copas das árvores ainda não deixaram de me impressionar.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Moçambique #22


08-05-12

Falta inspiração para escrever, essa que é necessária mesmo para o mais simples dos parágrafos...

A nossa breve partida já é tema de conversa e planeiam-se jantares de despedida, lembranças para quem nos acolheu e troca de contactos. Há uma urgência de querer estar, saber, fazer, escutar, olhar e memorizar.

Na escolinha, monopolizei a manhã para fazer a tal ficha com os dados dos miúdos e deixar à turma. É moroso e exige paciência perguntar a 36 miúdos entre os 4 e 5 anos, a idade, comida e cor preferidas, o que querem ser quando forem grandes e a que é que gostam mais de brincar, para além de os ir mantendo entretidos enquanto se vai ao lado de cada um, tentar arrancar as respostas. Isto em pouco mais de uma hora. Lá conseguimos, eu e a titia, e eles iam desenhando o contorno da mão na folha e pintando-a. As respostas, muitas eram dependentes das opções que eu dava. Por exemplo, como quase sempre recebia um silêncio quando perguntava o que querem ser quando crescerem, dizia que podiam ser médicos, enfermeiros, motoristas, polícias, professores, ter um café, e a resposta tendia para a última opção que eu mencionava. Excepção foi um que queria ser bandido e outro papá. Amoroso, não?

Outras vezes, independentemente do que eu perguntava, a resposta era ‘feijão’ e ‘matapa’. Suor e lágrimas à parte, o resultado foi satisfatório. Só falta mesmo fazer um retrato a cada um e deixar a impressão digital na ficha.

A saga das bodas de ouro da Irmã continua. Os ficheiros da pen voltaram a desaparecer mas lá conseguimos improvisar e acabar o vídeo. A saga continua porque agora é preciso passá-lo para cds que a Irmã quer distribuir em Portugal. Trinta e três. De vez em quando é que tomamos verdadeiramente atenção aquilo que estamos a fazer e nos rimos com as frases poéticas da Irmã acompanhadas de fotografias a condizer, tais como ‘Programar e planificar é o contributo para uma vida organizada’ e a Irmã em frente a um ecrã de computador com o desktop do Santo António.

Eu e a Sofia demos um saltinho ao hospital e a Joana ficou em casa à espera duma entrevista telefónica com a ESADE. Telefonaram-lhe só mais tarde, quando estávamos a sair do chapa, um ruído imenso na vila e ela ainda ofegante, mas tudo correu de feição e ela conseguiu entrar logo no mestrado que queria! Tenho a certeza que a emoção da banda sonora moçambicana ajudou.

Ao fim do dia, veio visitar-nos, mais uma vez, a Dona Rosária, que vem amanhã­ connosco a uma comunidade remota aqui relativamente perto. As histórias que ela e o Frei Filipe contaram do tempo da guerra... não devem sequer ser comentadas. Não há palavras. De monstruosidade humana, de tortura... Ou se estava com a Frelimo e contra a Renamo ou vice-versa, não havia inocentes aos olhos dos fanáticos. Isso criou um banho de sangue, maioritariamente no campo, toda a gente fugiu para a cidade. Imaginar que, a estrada que fazemos todos os dias num quarto de hora para escolinha, era caminho para uma morte certa... Ninguém podia circular, as comunicações foram todas cortadas, esta missão estava abandonada e a degradar-se, familiares e amigos esventrados e queimados... Durante desasseis anos.

É ouvir isto que me suga energia e inspiração. 

Moçambique #21


07-05-12

Tudo parece mais calmo, um chapa quase vazio é novidade. A razão dada é porque o Inverno já se faz sentir, expressão que para nós é pouco mais que risível, dado que estamos sempre de manga curta, quer sejam seis da manhã ou dez da noite. Mas a verdade é que há miúdos que vão para a escola de casaco polar e as pessoas queixam-se que é difícil levantarem-se de manhã. Eu não quero imaginar os nossos amigos postulantes durante o Natal fresquinho em Leiria.

O habitual e praseiroso cheiro a queimado faz-se sentir logo que saímos de casa, mas hoje despertou em mim um desejo súbito de leite-creme. E com isso, outros pitéus caseiros que me fazem falta onde quer que esteja e por qualquer período de tempo, como um arrozinho de polvo, um cheesecake... E a bica, santa bica...

Ainda em lides gustativas, há sempre novidades. Um fruto com o exacto sabor da goiaba mas que dizem chamar-se maicua e que nos deliciámos a juntá-lo com açúcar, fazer uma espécie de goiabada e comer com uma bananoca e o queijinho da vaca que ri; aprendemos, com a Irmã Arminda, a fazer um concentrado de maracujá de bradar aos céus (muito tempo de convívio franciscano faz nascer expressões destas com mais regularidade), e feijão-jugo ou pacura, uma junção perfeita de feijão-frade com grão de bico e que se come como snack, cozido.

Durante a manhã, levei a primeira letra do nome de cada miúdo escrita em papel vegetal com um lápis multicor que eles depois passavam por cima para ficar numa folha branca por baixo. Não testei foi esta actividade o suficiente e eles não conseguiram manter o papel vegetal fixo o tempo necessário para que saísse algo perceptível na folha branca... Para a próxima tenho que agrafar uma folha a outra, está-se sempre a aprender. A Joana, com a turma dela, pintou sal com giz de várias cores, que depois punha para dentro dum frasco, e que tomava uma certa forma lá dentro, como os habituais frascos de areia. Ficou muito engraçado e parece que os miúdos também adoraram!

Seguimos logo para casa das Irmãs pois chegara o tão ansiado dia para fazermos o víideo dos 50 anos da Irmã Teresa. Nós a pensar que nos despachávamos numa hora para ir ao hospital, qual quê, demorámos ali um tempão... O Movie Maker não funcionava, o portátil da Irmã decidiu transformar em atalhos todas as pastas com fotografias que eu levava no disco externo, apagando o que lá estava (momento intenso de pânico fotográfico), foi preciso escolher as fotografias ao pormenor, apenas aquelas em que a Irmã achasse que se parecia com "a presidenta" é que estavam dignas... Enfim, agora está tudo resolvido e daqui a muito pouco tempo vamos achar este vídeo uma pérola!

E, parafraseando o Frei Anselmo, no final do jantar de hoje, como mantra de boa noite "o tempo passa, a vida passa, e a morte se avizinha", seguido de uma gargalhada estridente. Este homem não existe.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Moçambique #20

06-05-12
Chegada a tão aguardada festa das crianças, preparada pela Irmã e nas preocupações de toda a comunidade, não desapontou. Uma missa de duas horas e meia, com direito a fatiotas especiais, crianças e mamãs de vozes muito afinadas devido às várias horas de ensaios, potência nos batuques e uma igreja sem lugares vazios. Vou daqui com um stock horário de missas que, em casa, compensaria por muitos meses.
A Irmã estava como que em speed, de um lado para o outro, a coordenar todos os presentes, tendo a certeza que eu fotografava cada momento e que ninguém se distraía. Ouvi uma fábula recentemente, de um sapo que vencia uma corrida em que as probabilidades de ganhar eram escassas e o público estava constantemente a gritar palavras desencorajantes mas que, mesmo assim, o sapo conseguiu chegar em primeiro. A razão? Porque era surdo. Penso que, parte literal, parte metaforicamente, a Irmã padece da mesma condição, para o bem dela e de todos os que são afectados pelo seu tsunami de energia e de querer-fazer.
Estava de visita uma Irmã e um padre angolanos, este último que celebrou a missa com a ajuda do Frei Anselmo. O início do sermão foi, no mínimo, desajustado a uma missa para crianças, onde foram lançadas expressões como "nesta festa podemos comer o corpo de quem nos convida, Jesus, nas outras festas não é assim!" e "quem não é fruto da videira, é cortado, fica fora da Igreja!". Mas depois redimiu-se, ao contar histórias algo cómicas, como a de que, no Inferno, as almas têm garfos atados aos cotovelos e que quando tentam comer, lhes cai tudo para as costas. A única maneira de se salvarem, física e espiritualmente, é alimentarem-se umas às outras. Não consigo, nem consegui, não me rir ao tentar imaginar a cena.
No fim, ainda houve tempo para trinta minutos de avisos (a paciência é virtude muito reforçada aqui). Um deles, que achei invulgar e de valor, foi o anúncio das receitas, despesas e saldo da paróquia nos últimos três meses. De notar que tem sido positivo. Adorava dar uma olhadela aos detalhes das contas!
Os postulantes cá de casa vão para Maputo amanhã e para Leiria dia 10, onde vão fazer o noviciado que antigamente era cá mas, por falta de interessados, foi acoplado com o português. O Frei Filipe teve, ao que parece, uma conversa séria com eles a seguir ao jantar, em relação a este passo importante com que se comprometeram já que se espera que de lá voltem já frades. Isto porque já muitos desistiram por razões interesseiras já que vêem uma maneira fácil mas desonesta de uma viagem para Portugal.
Como mais vale tarde que nunca, a Sofia tomou muitas notas da aula privada de Guitonga do Damião. Eu já lhe pedi para copiar tudinho! Achei foi um bocado estranho ele não saber, por exemplo, certas cores na língua que, ele afirma, sentir-se mais à vontade... Mas, pelo menos, sabe uma muito boa, o amarelo que, traduzido à letra, é "cor-de-banana".

terça-feira, 8 de maio de 2012

Moçambique #19

05-05-12
Mata-bichámos com as Irmãs cá em casa e estava guardada a promessa das mamãs para hoje fazermos matapa! Prato que, teoricamente, podia demorar meia-hora, aqui, foram três. Tudo feito do zero que depois compensa na intensidade de sabores. Primeiro, é preciso apanhar as muitas folhas de mandioca e descascar alhos, esses que têm menos de um centímetro já que não se dão aqui, e demora algum tempo. São depois esmagados, juntamente com as folhas, num pilão de meio metro de altura em que se ganha músculo imediato tal é o peso do mesmo e força que se tem que fazer! Leva-se essa pasta ao lume, com água, até ferver, que tem de ser alimentado a lenha e que nós ainda não nos aventurámos a tentar acender. Vão-se preparando os côcos, que precisam de ser apanhados, abertos e ralados, num banco próprio com uns dentes pregados, e que já aprendemos a técnica. Coa-se depois o côco ralado para usar apenas o leite, misturado com amendoim também ralado, cebola e tomate. Tudo isso vai depois a juntar ao preparado que está ao lume até ferver. Pode-se também juntar algum tipo de marisco, e a mamã  pôs uns caranguejos pequeninos que cozeu. É o prato típico de várias zonas circundantes e acompanha com xima, um puré de farinha de milho e água.
Raramente vemos sobremesas mas, hoje, as mamãs fizeram uma para dar as boas-vindas ao Frei Filipe que voltou do Maputo, como todos dizem, e fez morina, de farinha de mandioca torrada, amendoim e manteiga. Sabe a manteiga de amendoim mas a farinha dá-lhe um toque... peculiar, digamos. Peculiaridade essa que me partiu metade de um dente há uns dias atrás.
Já me tinha apercebido que a electricidade aqui também era especial enquanto estava a passar a ferro e o ligava, a luz ficava mais fraca na sala ou mesmo quando queria carregar o computador na ficha tripla compartilhada com o DVD, e este último deixava de funcionar. O fenomeno tem-nos atingido directamente, ao pifar o meu computador, o da Sofia e o telemóvel da Joana.
Nada que nos tire entretém, antes pelo contrário. A Sofia esta empenhadíssima em criar obras-de-arte com a madeira do côco. Eu fico-me por fazer taças deles. Preenchemos também umas folhas nos cadernos que vamos dar a cada miúdo, entre desenhos para eles pintarem e umas fichas de identidade, em que vão pôr a impressão digital, nome, idade, comida, cor, brinquedo preferido... Os cadernos são todos alusivos a jogadores da bola, o nosso Cristiano incluído. Era isso, ou o presidente estampado com um ar assustador.
Eu e a Sofia ainda demos um saltinho à vila, para comprarmos as pipocas dos miúdos, e acabámos num 'bar' memorável, onde as vendiam. Era um coberto de cimento, por falta de melhor maneira para o descrever, que tinha uma mesa de refeição e alguns començais, uma mesa de bilhar e três homens a beber uma Laurentina ao balcão, onde vendiam de tudo um pouco, pipocas incluídas. Em frente, uma mini-van com aspecto mafioso a bombar música psicadélica.
Logo os três meteram conversa, perguntaram tudo quanto quinze minutos de conversa permitem. Linhas gerais era sermos todos irmãos, que tínhamos um ar muito novo, que o Marcelo Caetano já cá tinha vindo, que os brasileiros nao têm nada a ver connosco, nós é que somos irmãos de origem e que estávamos convidadas a frequentar a sala de espectáculo deles, a discoteca, sempre que quiséssemos. Nas palavras da Sofia, "não desmentiu" que era freira e eles perguntaram se, ainda assim, lá podíamos dar um saltinho mais tarde.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Moçambique #18

04-05-12
Acho muito curioso a Irmã Teresa fazer questão que vamos visitar a casa várias pessoas queridas ou conhecidas à comunidade. Tem algo de antiquado mas que devia ser obrigatório e faz-nos sentir tão acolhidas e que não estamos aqui apenas de férias nem como turistas. Ela quer que as pessoas nos conheçam, saibam por que estamos aqui e que fiquemos com contactos para uma vinda futura ou mesmo para que a comunicação não acabe quando voltarmos para Portugal.
Hoje, visitámos a animadora da comunidade de Cumbana, de nome Alzira, ao almoço. É uma senhora muito proactiva e preocupada com tudo o que a rodeia, jovem, com uma filha e que tem o maior orgulho naquilo que tem construído na vida. Muito conversa com a Irmã acerca dos problemas que afligem este povo enquanto nos oferece carapau em molho de amendoim e leite de côco, arroz e moelas. Mostra-nos fotografias de festas de família e o seu jardim, com muitas árvores de fruto e flores, e quase se indigna quando não fotografo todos os pormenores, fora e dentro de casa! É também ela que faz o licor de limão que temos em casa, deixando as cascas em aguardente Paradise e açúcar durante 7 dias. 
Até agora, a maioria das pessoas que conhecemos são assim mesmo. Não duvido que não sejam todas assim, mas costuma haver certas características comuns a certas culturas, e nestes irmãos e irmãs, como já é natural chamar, vejo muito orgulho nas suas pessoas e poucos complexos. Depois cada um tem a sua personalidade. Nada que não possa ser constatado, da melhor maneira, na escolinha, onde as crianças mostram exactamente aquilo que são. Há as que ficam no seu canto sossegadas, as que brincam sempre com o mesmo amigo, as que estão na galhofa com qualquer um, as que não resistem a picar o que está à frente no comboio, as que fazem birra por tudo e por nada, as que tem gosto em aprender, as mimadas... como em todo o lado!
Hoje levámos uma bola para cada turma, já que era dia de ficar pelo recreio e limpar a escolinha. Duas bolas tiveram morte imediata, só sobreviveu uma. É sinal que os miúdos têm energia, ficaram doidos a correr atrás dela! Os que estavam mais sossegados, foram alvo desta titia chata a querer tirar-lhes umas fotografias.
De tarde, hospital, a fazer tarefas básicas mas necessárias, como dobrar compressas (não há pensos rápidos, temos que usar sempre gaze que vem em rolos gigantes) e separar os comprimidos por saquinhos.
Já estamos a adoptar uma característica, espalhada por toda a gente: utilizar o som ”hum”para qualquer situação. Os miúdos na escola, quando lhes perguntamos se querem desenhar, a resposta é ”hum”. O operador do chapa, se vai para Jangamo, ”hum”. Aos Freis, a que horas é para acordar e não percebem a pergunta, ”hum”. Para evitar silêncios constrangedores no meio de conversas, vários ”hum”. Serve para tudo, mas é extremamente inconclusivo quando queremos saber o que quer que seja!

domingo, 6 de maio de 2012

Moçambique #17

03-05-12
A Irmã Adriana continua doente e sem ir ao hospital. Como ficámos um bocado perdidas sem ela ontem, sem saber se estávamos a criar confusão ou ajudar, decidimos ficar a fazer-lhe companhia ao almoço e fomos apenas à escolinha durante a manhã e a tarde serviu para pôr leituras em dia e estar por casa.
Continuei a trabalhar com os miúdos no caderno, para treinarem a destreza com o lápis, através de exercícios de contornarem pontinhos de modo a criar diferentes formas. Quando já estão cansados, cantamos as músicas novas, tais como, “Doidas, andam as galinhas” e “Eu vi um sapo” ou as que eles já sabiam e que têm letras como “No Domingo fui à matiné, e encontrei a Dadinha” e  “Na casa da Raquel havia uma festa”, em que dançam muito, e outras como “Lava a cara de manhã cedo, os dentes com uma escova, penteia-se muito bem, para bonita ficar”, que cantamos quando chegamos. A Sofia filma no recreio, de vez em quando, com o telemóvel, e ainda bem para que mais tarde nos venhamos a embevecer e ficar cheias de saudades. Fizeram também um desenho, em que pedíamos que desenhassem alguém da família e pintassem, que depois fazíamos a legenda, e saíram obras de arte muito giras e outras simplesmente cómicas! Guardei ainda o nome de todos os da minha turma, 40, para usar nalgumas actividades futuras. Não tenho nenhum fabuloso como os que apanhei na maternidade mas tenho o Kelven, o Nirod, a Alucha e a Mirela da Cátia.
As Irmãs recebem-nos sempre muito bem ao almoço e adoro quando aparece uma hortaliça nova à mesa e deliciosa e que, surpreendentemente, nós, pelas palavras delas, “nem daríamos aos porcos”, tais como folha de feijão frade ou de abóbora, mas que elas transformam numa iguaria.
O Frei Filipe, o nosso pai daqui, tem estado em Maputo desde 3ª feira e volta Sábado mas hoje ligou só para saber se estava tudo bem. Já o Frei Anselmo, logo no primeiro dia que fomos para a escolinha, ligou-nos a dizer que já estávamos há muito tempo fora e que ele tinha sentido a nossa falta. Eu não quero imaginar quando estivermos numa de despedida a sério!

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Moçambique #16

02-05-12
Tenho andado um bocado doente, constipada, mas nada que uma boa dose de trabalho não obrigue a resolver.
Temos andado a pensar num presente para os miúdos e para as irmãs e como podemos prolongar os efeitos da nossa estadia por aqui. Por enquanto, já planeámos as actividades novas que vamos ensinar na sala, para que as titias possam continuar a fazer, tais como origami, quantos-queres, músicas que fiquem no ouvido com gestos, desenhos com papel vegetal… Também quero deixar uma ficha de cada miúdo, com o nome, idade, impressão digital, fotografia, o que querem ser quando forem grandes, cor e comida preferida, entre outros.
À tarde, a seguir ao hospital, ainda fomos a Maxixe, para adiantar um saco-presente que lhes vamos deixar com: um rebuçado, um caderno, um lápis de carvão e o que eles chamam de pipoca - um pacote pequeno de fritos, que eles estão sempre a comer no recreio. Para a escola, comprámos umas bolas de futebol, uma caixa de cem paus de giz e o Frei deu-nos umas canetas de feltro. Os miúdos ficam todos contentes, a Irmã Teresa mais ainda, e a nós não custa nada.
No hospital, a Irmã Adriana não estava pois tinha ficado em casa por estar doente, e nós ficámos as três na parte de consultas de mamãs e na farmácia. Estava tudo bastante caótico e parecia feito à balda, dando-se muito pouca atenção a cada mãe/futura mãe e ficámos um pouco desanimadas ao pensar que nem tudo é feito com a maior atenção aos pormenores e que pode levar a erros graves. Só era medido o tamanho da barriga, a tensão arterial, ouvido o coração do bebé com um objecto cónico de madeira, perguntava-se dormia com rede mosquiteira e de quantas semanas estava (várias não faziam ideia) e pouco mais… O resto da ficha, com mil e um pontos por preencher, levava com um risco em cima e estavam sempre umas cinco mães ao mesmo tempo dentro da sala.
Ainda é cedo para podermos dar palpites, e limitamo-nos à nossa ignorância, mas também temos vontade de fazer o máximo possível enquanto estamos aqui e, por isso, temos que estar mais tempo nos sítios e continuar a falar com as pessoas para perceber como tudo funciona e como poderia melhorar.

Moçambique #15

01-05-12
Este foi um dia que deu para perceber como seriam as férias de Verão dos meus pais e avós há uns anos atrás, pelo que eles contam.
Mesmo sendo feriado, acordei pouco passava das 7, para não ficar com os horários trocados o resto da semana, bebi um chá e comi uma carcaça com manteiga. Arranjámo-nos rapidamente e fomos à biblioteca aqui da missão, com 99% dos livros sobre São Francisco ou relacionados com o Catolicismo, como seria de esperar.
Demos uma volta à vila, que fica a vinte minutos a pé de casa. Lá, a Sofia comprou farinha e óleo para fazer uma espécie de plasticina para os miúdos numa loja em que, tal como as outras, a velocidade de atendimento é irrisória. Tal como numa aldeia, a polícia que lá estava a tomar um refresco, disse que já nos tinha visto por ali e, duma maneira um bocado creepy, disse “mas vocês ainda não me tinham visto a mim!”.
Fomos aos Correios, com pouca esperança de estarem abertos, mas logo um senhor nos veio indicar onde estava a senhora que lá trabalha – em casa, ao lado do local de trabalho -  mas que, amavelmente, veio abrir para podermos enviar umas cartas! Demos ainda uma volta pelo mercado, à procura de banana-maçã, um fruto estranhíssimo mas delicioso.
Ao almoço, come-se o que esta terra e altura do ano dão: laranjas, tangerinas, coco, limões, mandioca, cebola, feijão, abóbora, e ainda temos galinhas, coelhos, cabras e patos. Durante a tarde entretemo-nos a fazer sumo de laranja só a espremê-las com as mãos, a ver um filme e a tocar viola, uma nova que vieram emprestar. Quem precisa de quê, para além do que é simples?

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Moçambique #14

30-04-12
A energia hoje esteve em alta! Não sei se por ser início de semana, se pelo banho de mar, por nos habituarmos ao tempo quente mas estou mais inclinada para que tenha sido a necessidade i.e era mesmo preciso que hoje houvesse energia!
Alvorada habitual, chá Five Roses que o Ricoffy já enjoa, e escolinha com ele. Lá, estivemos concentrados nos cadernos que eles costumam usar, para treinar a destreza manual e algumas letras e números. Destreza essa que é escassa e 80% dos miúdos de cinco anos, não conseguiam fazer o número 3. Muito suei eu para que todos, ao fim de uma hora e tal tivessem dois 3 escritos no caderno! Alguns tentavam pôr-se em cima da folha e esconder o que estavam a fazer e iam olhando para cima a ver se eu continuava lá ou se tinham escapado. É mais fácil com duas pessoas a trabalhar com uma turma de quase 40 miúdos, como está agora, e a titia muito se deve esforçar para os ajudar, mas é preciso muita paciência e resiliência. Outros simplesmente não faziam nada até eu ir lá pegar-lhes na mão para escrever e, uma ínfima parte, mais aqueles que já estão nas escola desde os 3 anos, conseguiram à primeira. Disto passou-se para o alfabeto e contei uma história nova, que pouco tempo resta.
Fomos então para o hospital, a vinte minutos a pé da escola, de sandocha e tangerina na mochila. Estava muita gente, como da última vez, e é costume. Eu fiquei na parte das consultas de mamãs,  em que a todo o minuto a técnica que lá está pode ser chamada para realizar um parto, o que já tinha acontecido por três vezes nesta manhã. Adorei pesar uns quantos bebés, todos com menos de uma semana de vida, e preenchia a avaliação da evolução deles desde o dia de nascimento. Fiz também umas poucas “fichas” de novas mamãs que se quisessem inscrever – um papel amarelo do tamanho de dois cartões de visita, com o nome, data, valor da hemoglobina e assinatura da técnica (que fazia eu, era só um “T.P.C”) – com as quais muito me diverti já que aparecem nomes de mães, pais e filhos como “Cigarete” e “Castigo”. Mas a maior parte do tempo que lá estive, foi a dosear comprimidos, tais como Sal Ferroso e Paracetamol, para encher em mini-sacos zipados em que se escreve o nome e o modo de os tomar e a conversar com o farmacêutico sobre o hospital, enviados em grandes quantidades duma organização dinamarquesa chamada Missionpharma.
A Sofia também esteve na parte da farmácia mas a Joana foi para a casota da Irmã Adriana, onde se faz uma consulta de triagem e certos tratamentos mais urgentes, tipo feridas. Eu isso não consigo fazer mas, e ainda bem que não somos todos iguais, a Joana adora e fez um trabalho que em muito ajudou a Irmã. Logo nos primeiros minutos estava a receitar (!) comprimidos para serem aviados na farmácia de acordo com os sintomas do doente, que costumam ser indicativos de malária, pneumonia ou HIV, com a Irmã a dar o seu aval. É este o melhor indicativo de falta de pessoal por estas bandas e de como mesmo nós, sabendo tão pouco, podemos dar sempre uma mãozinha. Hoje, o tempo de atendimento desta casota foi, assim, tão simplesmente, reduzido para metade.

Moçambique #13

29-04-12
Temos andado a visitar várias comunidades aqui perto mas ainda não tínhamos sido apresentadas na nossa. Hoje foi o dia.
Logo pela fresca, o Frei François celebrou missa de mais de uma hora e meia, como sempre. Houve os já habituais cânticos, batuques, danças e igreja cheia na qual fomos convidadas, mais uma vez, a dar testemunho. Desta vez, ainda fomos melhor acolhidas, com as pessoas a levantarem-se para virem cumprimentar-nos a dizer “Sintam-se em casa!”. Que mais se pode pedir?
Como não havia programa de tarde, porque não dar um saltinho à praia? Os Freis também adoram e nós todos os dias sentimos na pele (!) que precisamos de uma corzinha. Parámos primeiro numa bomba de gasolina artesanal – um miúdo com garrafões de cinco litros de gasóleo – e fizemos à estrada para parar na Barra. É uma praia feita para turistas, mas que nesta altura são escassos, para nossa felicidade. A praia era praticamente nossa e o tempo e água quentes.
À vinda e já a escurecer, vejo o porquê do cheiro a queimado permanente nesta terra e que adoro – queimadas de galhos secos e arbustos à beira da estrada e umas muitos grandes, no meio do mato, hoje maiores e em maior número já que não tinha havido electricidade durante todo o dia. Costuma estar em manutenção aos Domingos, dizem.
Os fins de dia aqui são como eu gosto e inesquecíveis: a linha do horizonte torneada por milhares de coqueiros com um degradé perfeito a começar num cor-de-laranja tijolo e acabar num azul claro límpido. Com Bob Marley a tocar no jipe e a pele salgada pelo Índico é perfeição.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Moçambique #12

28-04-12 #12
Mais um dia de festa na comunidade, outra vez no meio do mato mas, agora, um casamento! Ao ar livre, debaixo dum coberto de madeira e folhas de palmeira, adornado com flores lilases e brancas, chão de terra arenosa – como em todo o lado -  e as vestimentas mais dignas de fotografia possível. As mulheres vestem todas capolana, um tecido colorido com os padrões africanos de cada zona ou país, que pode ser usado como saia ou transformado em vestido, camisa, pano para a cabeça ou mesmo para servir de decoração nas paredes e mesas. Nós já comprámos uma e o Frei Filipe ofereceu-nos outra quando chegámos, uma azul céu com imagens de palmeiras, Nossas Senhoras, peixes, tudo num mix harmonioso para celebrar os 50 anos da Paróquia. Capolana essa que levámos hoje e que já muitas pessoas nos ajudaram a pôr decentemente!
Não é raro ter que ser o carro do padre a ir buscar os noivos para a igreja e levar depois para o copo de água e foi isso que aconteceu. Lá fomos nós apertadinhos, com ainda mais convidados na bagageira, mas num silêncio sepulcral já que a noiva só grunhiu um bom dia e estava com um ar de quem ia para a forca. Os Freis já nos tinham dito que, aqui no sul, havia noivas que se tornavam como que escravas para a família do noivo e foi imediatamente isso que pensei quando olhei para o ar de infeliz da senhora… O Frei diz que não, que eles só estavam stressados porque deviam ter ido ao registo antes da cerimónia, que o casamento já ia começar atrasado… tenho as minhas dúvidas. Acontece que a noiva, assim que se casa, passa a fazer parte da família do marido e já não da sua onde nasceu. Assim, os pais da noiva têm que pagar um dote à família do noivo para que esta tome conta da sua filha, e há uma grande pressão nela de honrar o nome dos pais na nova família. Ela passa a ter que tratar de tudo de todos na nova família e chega ao ponto de, se o marido morrer, um irmão poder tomar o lugar do falecido! Os Freis muito abanam a cabeça de descontentamento quando contam isto. No entanto, dizem que ninguém é obrigado a casar, mas que também é impensável ficar sem marido…
Cá por casa, foi tarde e noite de “recreação”, como é chamada, que acontece uma vez por mês. É dia de festa, e os frades daqui não são o que se imagina – calados, recatados, sérios – são os que têm mais energia, o riso mais forte e vontade de estar sempre a mexer! Nós, fizemos brigadeiros para sobremesa porque achámos ser o mais fácil de fazer com os ingredientes que temos por aqui, sem frigorífico, forno, e com fogão a lenha. Não saíram mal, para a próxima aventuramo-nos com um bolo que já apalavraram ao Frei emprestar um forno quando for preciso! Estivemos também a tentar arranjar a viola que está cá, mas sem sucesso; lavámos a roupa no tanque; lanchámos tangerinas e feijão fresco cozido e ainda estivemos a fazer hóstias. De noite, a festa foi animada, com muita cerveja preta, comida e música africana, um bocadinho de reggae e mesmo portuguesa que dançámos com os Freis! Eles não são, de todo, típicos, volto a enfatizar.

Moçambique #11

27-04-12
What a day.
Acordei preocupada ao ver que não tinha Mephaquin, para a malária, em quantidade suficiente até ao fim dos dias aqui. Valeu-me o excesso que a Sofia trouxe!
Estivemos com os miúdos no recreio - a 6ª feira é passada ao ar livre - e tirámos uma grande fotografia de grupo, deles com as titias e as Irmãs. Passámos num café vizinho, a Pousada de Cumbana, em que a dona é tia da Mariza fadista, que visita a tia Marta sempre que vem a Moçambique. Estivemos também com uma empreendedora aqui da zona, a Mamã Rute, que tem todo o tipo de fruta no seu terreno e é uma grande amiga dos Franciscanos de cá.
Já sabia que a seguir íamos visitar a Irmã Adriana, enfermeira angolana, ao hospital de Cumbana, onde é a escolinha, mas nem sequer pensei muito nisso nem achei que me tinha de preparar emocionalmente. Também acho que não teria valido muito a pena. Sou daquelas maricas que ficam agoniadas só de pensar em ir a uma consulta, que não conseguem olhar para as seringas quando levam uma vacina e que quase desmaiam quando vêem sangue mas penso que mesmo que não fosse, teria o choque que tive na mesma, hoje. 
O hospital… são várias casinhas espalhadas por um terreno, algumas mesmo palhotas, com o mínimo de tudo para funcionar. O mínimo de pessoal, de material, tudo. Há a casinha das consultas, a primeira onde entrámos, e onde a Irmã Adriana estava a tratar um bebé que tinha caído de cara num balde de água a ferver e estava a renovar os pensos. O bebé só conseguia gritar e chorar, ao tirarem-lhe a gaze que cobria a cara toda, sem qualquer tipo de anestésico. Essa casinha tinha cerca de 100 pessoas sentadas cá fora à espera de entrar, com uma enfermeira e uma técnica disponíveis.
Duas tendas grandes e brancas são a maternidade, já que o antigo edifício desta está a ser arranjado. Lá encontrámos um bebé que tinha nascido durante a manhã, a mãe não devia ter mais de 16 anos e, a fazer-lhe companhia, outra criança de uns 12 anos. Há também a casinha da farmácia, da vacinação e uma outra que acolhe futuras mães, que moram longe e estão a menos de um mês do parto, e ficam ali no hospital até terem a criança.
É doloroso pensar que há opções tão escassas para estas pessoas quando estão perante a doença, o quão fácil é morrer por falta de tão pouco nesta terra… Mas o choque tem que ser transformado em acção e para a semana vamos passar a ajudar também no hospital. Tem que ser. Não sabemos fazer muito mas tudo é melhor que ficarmos paradas.
Tenho uma nova heroína, esta Irmã Adriana, que criou todo este espaço do zero para acolher, principalmente, mães e filhos que precisem e que, de outro modo, não sei mesmo o que fariam. Trabalha todo o dia no hospital, lida com a miséria e enfermidade e, mesmo assim, quando às vezes vem almoçar connosco, mostra a maior leveza de espírito, energia e bondade.
Eu tenho muita sorte de a ter conhecido e espero poder contribuir, provavelmente só uma migalha, para o sonho que ela teve e está a tentar tornar realidade.