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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Moçambique #10

26-04-2012
Este tempo quente e as horas de sono que nunca são suficientes ao acordar às 6:30, fazem com que fique muito mole durante todo o dia, por mais Ricoffy e chás que beba, acho que amanhã vai ser a Redbull.
Já nos conformámos com o chapa, que nos dá liberdade para irmos onde e quando queremos, mas a verdade é que nada bate o jipe dos Freis, a bombar “Celin Dion” pirateada com um “I know that I’m alive!” pelo meio do mato moçambicano.
Sempre tive noção que educar alguém é das maiores responsabilidades de uma vida. Dar as bases, de uma maneira equilibrada, para um futuro feliz é quase tarefa impossível. Aqui, como em todo o lado, as professoras têm uma quota-parte dessa responsabilidade. Não sei se não mais importante que em Portugal, quando os pais aqui têm 8, 12 filhos. Os nossos colegas de casa acham muito estranho todas nós termos só um irmão ou irmã.
Ouvimos histórias do Frei Filipe das pessoas de cá, dos miúdos da escolinha, algumas muito difíceis. Uma menina que lhe morreu a mãe e vive com o pai já velho e mais não sei quantos irmãos, está sempre a querer a minha atenção, a querer dar-me a mão e eu ainda não sei bem o que fazer, se digo para ir brincar, se continuo com ela... Como só cá vou estar com eles três semanas, não sei se o melhor é tentar ensinar jogos pedagógicos e actividades para eles se desenvolverem e as professoras continuarem ou simplesmente ser criança com eles, ouvi-los e uma boa dose de mimos. Tenho feito mais este último.

Moçambique #9


25-04-12
Estou a começar a sentir-me em casa, no meio de tudo o que é estranho. Nunca tive dificuldade em adaptar-me à mudança mas o processo é ainda mais rápido se faço amigos pelo caminho.
Os miúdos já se abrem comigo, isto é, já recebo mais que um sorriso envergonhado e um grunhido do que poderá ser o nome deles, à terceira tentativa. Já querem andar de mão dada comigo, sentar-se ao meu colo, mostrar-me os sapatos que trazem e a pasta e explicar quem lhas ofereceu. Na sala de aula, cantámos o “Eu vi um sapo” acompanhado com o batuque da Titia Sara, contámos histórias, desenharam (anda sempre à volta de maçãs, bananas, laranjas, carros, maçarocas, aviões e flores) e escrevi com eles aquilo que tinham desenhado. No recreio, estão mais à vontade e vêm ter comigo para me mostrar as bolachas e as pipocas que a mamã mandou, mexer no meu cabelo e nos óculos de sol e comparar as minhas mãos com as deles. Todos estes miúdos são muito dados e carinhosos, mesmo os que possam ser mais tímidos.
Em casa, já comecei a lavar a roupa no tanque com a ajuda das mamãs – que muito se riram, à custa da minha falta de prática -, estive a ajudar na cozinha com o jantar, a Sofia foi com o Damião e o Eufrásio - os outros dois aspirantes além do Clayton – ao Salão de Beleza Nita para o primeiro rapar o cabelo e até estive, com a Joana, a dar voltas à casa a correr e a fazer exercícios de resistência. Os vizinhos estiveram entretidos durante uma horinha a olhar para nós, como se pode imaginar.
Tomo banho de água fria com um balde, durmo com rede mosquiteira por cima, como cana-de-açúcar e castanha de cajú como quem não precisa de mais nada, osgas de dez centímetros e bichos a cair do tecto directamente para o prato da fruta já não despoletam qualquer reacção… Só ao início é que há choque, passada uma semana é um gasto de energia preocupar-me ou tentar imaginar a próxima surpresa.
Mas, sem dúvida, o positivo ultrapassa todas as expectativas, desde os pitéus preparados com muito amor pelas mamãs ao Frei Filipe a planear e executar meticulosamente a plantação de mais uma árvore como se dum filho se tratasse; haver um convívio muito saudável com galinhas, vacas e cabras diariamente; o céu, meu Deus, o céu! de noite com mil e uma estrelas e de dia com as nuvens e azul mais perfeitos; os dentinhos de leite dos miúdos…
Com uma nova família como esta, torna-se tudo mais confortável.

domingo, 29 de abril de 2012

Moçambique #8

24-04-12
Que a realidade ultrapassa sempre a ficção, já eu sabia. Aqui, é diariamente.
Fomos finalmente de chapa para a escola, esta primeira vez acompanhadas pelo Clayton, um dos aspirantes a frade, de 23 anos, que também mora cá em Jangamo. Por 15 meticais, cerca de 40 cêntimos, na viagem Jangamo-Cumbana, temos direito a estofo estampado de pele de leopardo, “mamãs” que levam num alguidar o peixe para vender, música ritmada a bombar dum cd pirateado e o esquemas do manager (!) do chapa para conseguir enfiar mais gente por centímetro quadrado em cada paragem. Chegar ao destino é secundário! A verdade é que vai quase porta-a-porta já que pára praticamente onde lhe pedimos.
Na escola, estivemos a tirar fotografias à Irmã Teresa para o seu cd dos 50 anos que e estivemos com os miúdos. Voltei a reforçar “A saia da Carolina”, brincámos à apanhada, contámos histórias e dançámos. Muito! Eles batem-me aos pontos, obviamente. O mais importante é mesmo dar carinho aos miúdos, eles sentirem que nós estamos ali para eles, puxar para que falem e tentar ensinar alguma coisa enquanto nos divertimos. Isto porque mesmo os “mais velhos”, de cinco anos, só se espera que acabem o ano a aprender a escrever o nome, o abecedário, desenhar, os números e pouco mais. É muito complicado se não há apoio em casa por parte dos pais… A língua que falam em casa pode não ser português, alguns entram só para aqui com 5 anos e esta até é das melhores escolas da zona, mas só consegue levar cerca de 80 alunos.
De tarde, fomos às compras da casa com o Frei Filipe e tratar de registar o cartão da Vodacom para pôr numa pen de modo a termos internet. A vila (ainda) não é sítio que me agrade particularmente, ainda está muito fora da minha zona de conforto, mas isso só faz com que me obrigue a mim mesma a lidar com isso. Isto porque é uma enorme confusão, não há sistema de lixo, o mercado é o salve-se quem puder, e há sempre demasiada informação para processar. Sem mencionar que, no meio das centenas de pessoas que estão sempre em todo o lado, 99% delas param tudo o que estão a fazer para olhar para nós. Os primeiros dois segundos, com cara de quem está perante um ser nunca antes visto mas que, na maior parte das vezes, se transforma num sorriso quando acenamos e vêm que falamos português. Havemos de nos habituar. As lojas parecem tiradas de um Portugal nos anos 50, com caixas registadoras quase retro, com produtos como o restaurador Olex, e uma industrialização esteticamente pouco agradável liderada por chineses e indianos, que são sempre os donos das lojas com mais gente, infelizmente.
Foi um dia para conhecer melhor os que nos rodeiam, especialmente a Irmã Teresa e o Frei Filipe. Contaram-nos histórias que eu nem consigo imaginar. Histórias de guerra, de solidão, exclusão e medo que não desejo nem ao meu pior inimigo. O Frei Filipe deixou a família que vivia, literalmente, no mato e vestida com folhas de árvore, quando foi para cumprir o serviço militar obrigatório. Lutou e viu morrer, e esteve nove anos sem qualquer tipo de contacto com a família, sem saber nem eles saberem notícia alguma uns dos outros. Falou-nos ainda da História de Moçambique e das condições actuais políticas e sociais que, aos olhos dele, são muito tristes. Há muita corrupção, ao ter o mesmo partido a liderar há não sei quantos anos, a Frelimo, que é uma máfia pura e dura. A Irmã Teresa, esteve em Angola, também durante a guerra, e viu destruírem as missões que tinham construído, escolas, hospitais e, depois do primeiro tiroteio à porta de casa, tentou voltar para Portugal. Não a deixaram, ela teve que lá ficar e só diz que espera nunca ter de passar pelo mesmo.
É o que mais me tem impressionado e me faz sentir que estou noutro mundo, quando é inútil tentar imaginar o passado da maior parte das pessoas que encontro. Desde os miúdos da escolinha até às mamãs que trabalham cá em casa, todos têm uma história para contar quando já começamos a ter confiança para que ela venha ao de cima. A mim resta-me ouvir e admirá-los infinitamente.

Moçambique #7

23-04-12
Os dias têm sido um turbilhão de emoções, mas outra coisa não seria de esperar. O estar deitada na cama é, para mim, o mais difícil. Invadem-me imagens violentas e cenários dantescos por causa das histórias dos missionários que foram mortos há uns anos aqui perto mas, mais ainda, daqueles que vemos nos filmes, com muita guerra e violência. Podia chutar isto para canto, mas prefiro aceitar que penso nisto e esperar que tudo corra pelo melhor, que melhores dormidas virão... Até porque estou aqui, não de férias, mas para viver como os locais, e os Freis estão sozinhos todo o ano. Mas não é a mesma coisa: somos as únicas brancas num raio de vários quilómetros, além da Irmã Teresa, e estão sempre a lembrar-nos que muita gente só vê cifrões em nós; é permanente as pessoas ficarem especadas a olhar, quer entremos num café, igreja ou mesmo dentro do carro; não temos os mais de 90 quilos e metro e oitenta dos Freis; estamos sempre a ser avisadas para trancarmos tudo, não andar nunca sozinhas, mostrar menos pele do que em Portugal, e por mais à vontade que eu me queira sentir, há sempre um sentimento de alerta. Cansa nestes primeiros dias, mas acredito que depois diminua e se instale a confiança.
Então hoje, o primeiro dia de aulas, foi precisa mais energia do que o costume! Conhecemos a escolinha, as três turmas, as titias (as professoras dos pequeninos) e estivemos com eles umas três horas. Fiquei com os de cinco anos, que já sabem o abecedário, alguns números e estivemos a cantar. Ensinei-lhes “A saia da Carolina”, já que foi a primeira música que apareceu no livro que a titia lá tem, e a brincar às apanhadas no recreio. Os miúdos são todos amorosos e tão bem comportados: esperam que todos se sentem antes de começar a comer no refeitório, nunca contestam a professora, cantam muito afinadinhos e respondem um “Está tudo bem, graças a Deus!” quando lhes perguntam como estão! Já estou a ver que vou querer levar todos para casa, apesar de saber que, pelo menos aqui na escola, são muito bem tratados.
Tenho que começar a relembrar-me de jogos que fazia em criança, preferencialmente gastando poucos recursos já que, mesmo o papel, devemos tentar poupar. Cantar é uma boa maneira de aprender qualquer coisa, ainda para mais com o batuque e as palmas, e podemos estar sempre no recreio, em que o chão é de areia e tem baloiços, escorrega, e outros entreténs. A Joana lembrou-se de fazer desenhos no quadro, na sala dela, para os miúdos adivinharem, o que é boa ideia. Amanhã vou tentar implementar o jogo da macaca!
Conversámos muito com a Irmã Teresa, que é uma mulher de armas, está cá desde 97 e antes esteve em Luanda, vinda directamente de Mirandela.
Tenho muito que aprender com a Irmã. Por enquanto vou ajudando naquilo que posso, em assuntos mais práticos. Ela precisa que façamos um cd de fotografias com texto e música. A Irmã já escreveu o que quer, e nós temos que tirar as fotografias, escolher a música e juntar tudo, isto para oferecer a várias pessoas como comemoração dos seus 50 anos de vida religiosa.
 Demos também uma voltinha pelos cafés e mercado vizinhos, onde se vende de tudo um pouco e encontrámos o fotógrafo que esteve no baptismo connosco.
Ponho-me a pensar na vida para que vou voltar e que não quero que esta vinda seja apenas mais uma experiência. Pelo contrário, quero que dê frutos duradouros e que influencie o meu percurso em todos os sentidos i.e. que a minha missão de vida tenha uma componente forte de missão. A vontade está lá toda mas também compreendo aqueles que desistem - não é fácil estar longe de tudo o que é confortável e dos que gostam de nós, ser olhado primeiro com desconfiança e sem qualquer promessa de sucesso. É preciso vocação, como em tudo.

sábado, 28 de abril de 2012

Moçambique #6

22-04-12
“Fraternidade” é uma palavra cheia de poder e amor. É mais do que convívio, amizade e partilha, é o estarmos juntos numa caminhada, não querendo puxar para o lado da beatice, que nunca foi o meu forte. Sinto isso com certas pessoas mesmo estando em Portugal, e aqui com os Irmãos é algo que se desenvolve rapidamente. E tem-me parecido que acontece o mesmo com as comunidades que nos cercam. São 37 com um único pároco, o Frei Anselmo, um homem divertido e muito bom coração, que tem de servir a todas como pode e é sempre recebido com a maior das alegrias!
Hoje foi o caso, ao ir celebrar vários baptismos a uma terra chamada Bongo. Somos recebidos com uma verdadeira festa, com palmas, cantoria e dança, dos mais velhos aos mais novos. E foi só um anúncio de como iria ser a celebração, na capela mais artesanal que imaginar se possa, feita com chapa de metal, madeira e pregos. As músicas e a Bíblia são na língua local, o Guitonga e tudo o que era dito em português era depois traduzido, apesar da maioria dos presentes conseguir entender português. Receberem o baptismo, na maior parte, raparigas entre os 12 e os 17 anos, todas vestidas de cetim branco ou branco-pérola e sapatos também da mesma cor, de verniz. Foi a eucaristia mais animada a que assisti, com os batuques (feitos  de latas de tinta vazias e uma pela de animal), o som dum instrumento com o mesmo efeito que as maracas mas como que espalmadas e rectangulares, gritos pelo meio das músicas, muito ritmo e dança - em que eu também entrei mas tenho muito que treinar! - em que o Frei Anselmo é um profissional. Demos o nosso primeiro testemunho que, por enquanto, consiste apenas em apresentarmo-nos e dizermos aquilo que sentimos que devemos dizer. Para mim, consistiu em dar os parabéns aos jovens em questão e tentar transmitir a sorte que tive em poder assistir e participar numa festa destas. Depois da festa, as famílias preparam ainda uma refeição com aquilo que têm mas, principalmente, o que não têm, e comemos um arrozinho com galinha guisada que estava muito apetitoso. Temos apenas que ter cuidado com a água, não faz bem aos nossos estômagos beber aquela a que eles estão habituados, mas tudo o que seja cozinhado não tem problema. Não consegui tirar a máquina da bolsa, ainda foi tudo um bocado “overwhelming”, à falta de melhor expressão, e prefiro ambientar-me primeiro para depois estar inspirada para fotografar e também por a Sofia e a Joana o terem feito.
Voltando à questão da fraternidade, é tão reconfortante ver como os mais novos tratam os mais velhos por aqui, sempre por “papá” e “mamã”, quer sejam da família ou não e nós também já tratamos todos assim tal como todos nos tratam por “irmãs” ou “manas”.
De tarde, houve tempo para apanhar um bocadinho de sol, pôr as leituras em dia e descansar, antes de acompanhar o Frei Anselmo nos seus afazeres à cidade. Conhecemos também o seminário com o Frei François, um congolês adepto do Chelsea, do Real e do Barça que cá está há quase dois anos.
 Hoje preciso mesmo de dormir, depois de ter andado a conduzir-nos pelas estradas moçambicanas de noite – uma tarefa que exige muita concentração por causa dos buracos, areias, arbustos, lombas, peões à beira da estrada, inexistência de iluminação, o facto de haver sempre só uma faixa estreita, da condução ser à esquerda tal como as mudanças e dos máximos que os outros carros insistem em manter quando estão de caras connosco - e até ter sido apanhada pela polícia a fazê-lo (sem carta, pois).
Os nossos camaradas continuaram viagem mas deixaram-nos os contactos e muito bem entregues.

Moçambique #5

21-04-2012
Último dia dos nossos companheiros de viagem connosco. O Carlos, o Sérgio e o Frei Vítor vão continuar para outras missões até dia 1, quando voltam para Portugal.
Fomos visitar as Missionárias de Maria em Guíua e o cemitério onde estão enterrados vários formandos das missões, que há alguns anos foram mortos por rebeldes moçambicanos que eram a Igreja Católica. O Frei fez questão que lá passássemos a ver as campas com os nomes todos mas não é o melhor sítio para levar três miúdas que vão ficar em casa de frades por cá…
Conhecemos uma menina amorosa, a Rute, que nos mostrou o caminho até lá e tinha uns chinelos com a bandeira de Portugal.
Tirámos a tarde para lazer completo e fomos para uma zona ao pé do mar, que está cheia de lodges construídos por sul-africanos no sítio mais paradisíaco que se possa imaginar. Almoçámos na zona do Tofo, que no Verão está apinhada de turistas, mas que agora estava praticamente vazia mesmo estando um tempo óptimo para tomar banho, com água a uns 25 graus. Nota: vir cá passar férias no “Inverno” moçambicano. Ainda houve tempo depois para estar num bar de praia e do Frei Filipe, o nosso condutor do dia, tomar um whisky duplo.
Acabámos a visitar o Frei Salvador na paróquia de Inhambane. Fez-nos uma visita guiada, ofereceu um Ricofizinho e umas ervas secas, a moringa, que ele jura fazerem bem a tudo e indicou que o Frei Filipe tomasse aquilo todos os dias. Ainda gostava de levar a moringa para um laboratório e ver realmente o que é aquilo! Mais uma vez, que simpatia e acolhimento por parte de toda a gente. Sinto-me verdadeiramente confortável logo que conheço a maioria desta comunidade, que achava ser muito mais tímida e reservada mas carinho é aquilo que encontro sempre. Carinho com imensa consideração por nós, quando não merecemos nada disto, utilizando sempre um “obrigado” quando nós dizemos “boa tarde”.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Moçambique #4

20-04-2012
Um dos temas de conversa permanentes é a malária. Doença que não tratada se torna fatal, é facilmente confundida com uma gripe mas é transmitida através de um certo tipo de mosquito. Quem vem para África é avisado constantemente como prevenir, já que muita gente morre dela, mas é porque as pessoas simplesmente não têm os comprimidos para tomar pois se os tivessem, em dois três dias ficam curadas… Nós, para não apanharmos, andamos com pulseiras, sprays, tomamos comprimidos e mesmo assim quando vemos um mosquito fugimos como o diabo da cruz! Já ouvimos histórias de um que esteve cá quatro anos e só quando voltou para Itália é que apanhou; vários miúdos que não têm medicação e acabam por morrer; o Frei Vítor que cá esteve 7 anos e nunca teve; outra que é simplesmente imune; mas a minha preferida, nas palavras do Frei Filipe, foi “uma freira velhinha que pulverizou o quarto com Baigon antes de ir dormir e, de manhã, acordou no céu!”.
A malária é paralela à situação da diferença humana que sinto estando cá: ninguém sabe quem vai ser afetado, neste caso, por nascer numa condição melhor ou pior. Nós não temos mérito nenhum em ser mais ou menos desenvolvidos, em viver em casas mais confortáveis ou ter estudado durante mais anos. Muitas vezes, dou por mim a pensar que tenho que vir ensinar, educar, criar bases para a sustentabilidade mas, de verdade, que percentagem disto me é imputável? Tenho consciência que escolho pouco daquilo que sou, quer seja por onde nasci, por quem conheci ou por que oportunidades tive mas tenho a liberdade de o aceitar ou querer diferente. Por vezes, a simplicidade é o caminho mais difícil e é o que tenho retirado do convívio aqui em Inhambane.
Hoje estivemos em sítios estonteantes, como a Baía de Inhambane que, com a companhia de uma casquinha (camarão com açafrão, pão, ovo e outras especiarias) e uma preta (cerveja) não podem deixar ninguém indiferente e passámos depois para o outro lado, por 10 meticais, com as pessoas que fazem este percurso todos os dias e, obviamente, já achamos curioso é ver um branco por estes lados e, oh, também muito brincam os moçambicanos negros connosco quando nos vêem!
Estivemos também na escola onde vamos começar por dar apoio, aqui em Jangamo, liderada pela Irmã Teresa. A escolinha é a coisinha mais querida, vê-se que está muito estimada, tendo sempre em conta quanto se recebe e gasta, nada é desperdiçado. A Irmã é das pessoas mais despachadas que já conheci na minha vida, fez-nos o tour completo a explicar cada pormenor. Vamos estar com 80 meninos e meninas, entre os três e os cinco anos, que entram às sete da manhã e saiem pouco depois do meio-dia, com um lanchinho pelo meio. A irmã mostrou-nos as salinhas, o recreio, as árvores que têm e disse que cada família deve pagar à volta de 150 meticais por mês de maneira a criar um modelo sustentável e, quando ela já lá não estiver, ninguém seja mal habituado a que depois todos os serviços escolares funcionem de borla, porque assim ninguém volta a pegar no ensino por aqui. Acho que nos vamos dar muito bem, estou ansiosa que comece a escola!
Demos também um salto a Homoíne, onde vamos estar depois, já com jovens, liderados pelo Frei Viegas. Fiquei impressionada com o tamanho da missão e de todos os serviços que disponibiliza, entre oficinas, enfermaria, lar, catequese, escola… É impressionante ouvir os relatos do que havia aqui no passado e que se vê, pelo tamanho e número de casas existentes e que agora estão vazias. É uma pena que não se tenha continuado com a mesma força algo de valor como esta missão, pelas mais determinadas razões que mais tarde vou querer aprofundar. De qualquer maneira, foi um deleite conhecer as “velhinhas”, como lhes chamam, que vivem juntas com algumas crianças e encontrámos a preparar o almoço. Os “velhinhos” estão noutro sítio já que, nas palavras do Frei Viegas, “sabe-se lá o que aconteceria se se juntassem os dois!” Eu não estou a ver grande alvoroço a vir daí, mas ele lá sabe!
E como não podia deixar de ser, as novidades culturais são sempre muitas e hoje foi provar cana-de-açúcar e sumo de concentrado de maracujá, tudo natural e delicioso; ver videoclips de dança do Zimbabué e o reggae do Lucky Dube, de quem todos os Irmãos parecem ser fãs!
Utilizando a melhor expressão que tenho ouvido até hoje de despedida e a mais comum aqui,
Estamos juntos!

Moçambique #3

Jangamo, Inhambane, Moçambique
19-04-2012

Já quase me conformei com o facto de que paisagens estonteantes são muito difíceis de reproduzir. Acredito que uma fotografia deve contar, por si só, uma história, mas um lugar mágico tem mais que muitas para contar, não só uma, e daí a dificuldade em retratá-lo. Os mais dotados talvez a consigam transformar em palavras, mas eu resigno-me com a minha falta de competência nesta matéria. Não se pode reduzir apenas a uma dimensão um aperto de mão caloroso nem uma baía de perder de vista. Certos lugares hoje foram assim, felizmente.
Saímos de Maputo às 5:30 e às 8:30 mata-bichámos com outras irmãs Clarissas pelo caminho. Desta vez já estávamos mais a par do que fazem e por isso tivemos conversas mais descontraídas e foi como se tivéssemos vindo visitar amigas de há muito. É, mais uma vez, com a maior simpatia que nos recebem e ficam felizes ao saberem que iremos ficar dois meses em Inhambane, terra natal de uma delas. Ainda não têm mosteiro para estarem em clausura pois só chegaram aqui faz um ano. Assim, mostraram-nos o terreno onde já têm flores de todas as cores, erva-príncipe, mandioca, cajueiros e laranjeiras tal como dois canitos e um casal de porcos que, aquando do nascimento de uma cria, voltam aos donos originais para que as irmãs fiquem com o pequeno. A igreja era muito kitch, com as paredes pintadas de cor-de-rosa e verde-água, vitrais com cores primárias e um chão muito retro, com azulejo a preto e branco em diagonais. Vê-se que precisa de ser restaurada mas é muito especial e recebe alguns turistas.
Antes de nos despedirmos, ainda fomos requisitados para ajudar uma das irmãs, portuguesa, a tratar de arranjar a impressora. Todo o cenário era digno dum filme do Woody Allen – com coqueiros lá fora, a irmã com sotaque bracarense cerrado, óculos desproporcionalmente grandes para o tamanho da cara e hábito castanho e branco, a explicar-nos como já-tinha-instalado-a-impressora-toda-XPTO-Laserjet-mas-que-o-processo-de-instalação-não-tinha-acabado-porque-a-Internet-tinha-ido-abaixo-mas-agora-já-estava-a-funcionar-e-o-tone- e-novo-mas-o-Windows- tinha-ar-de-ser-o-primeiro-lançado-pela-Microsoft, isto enquanto estava sentada com o ecrã do computador inclinado para cima dela e a mexer no terço, que trazem sempre pendurado na corda, que podia ser que o Santíssimo também ajudasse nestas ocasiões.
Estrada fora, entrávamos agora num tipo de paisagem ligeiramente diferente, com mais coqueiros, terra muito argilosa e menos casas de cimento, mais de esteira, mas sempre com planície muito vasta. Quase a chegar a Inhambane, parámos na baía mais maravilhosa que alguma vez vi, de um azul e verde tão intensos… Provei água de coco e lenho, o coco quando é fresco e comprei o novo vício, caju torrado. Num contacto mais próximo com os vendedores e a malta que se reunia à nossa volta, deu para perceber que eles parecem um pouco tímidos ao início mas que têm o sorriso mais bonito quando este aparece.
Ao chegar à nossa casa, fomos recebidos pelo Frei Filipe Quenquene, que vai estar connosco nas próximas três semanas e por três rapazes que também cá vão estar e são aspirantes a frades, os postulantes. Houve gazela, arroz com um folha que ainda hei-de descobrir o que é, e uma iguaria típica – matapa. Consiste em folhas de mandioca e amendoim triturados com leite de coco. É absolutamente delicioso como molho a acompanhar o que quer que seja e não saio daqui sem estar expert em cozinhá-lo. E comê-lo, claro.
Tivemos ainda tempo de ir ao mercado e conhecer um bocadinho da cidade de Inhambane, que fica a cerca de 25 minutos de carro por uma estrada fascinante. Aí, vêm- se as povoações construídas em palhotas de uma espécie de areia cimentada, muito planas, no meio dos coqueiros e era como eu imaginaria África logo quando ouço a palavra. Há também homens, mulheres e crianças a tentar vender camarão ao estendê-lo em frente aos carros que por lá passam e muitos chapas a passar apinhados – mini-vans de 15 lugares onde vão umas 25 pessoas e que é o meio de transporte mais comum.
O mercado era muito rico, colorido e animado, com piri-piri, coco, tomates, abacaxis, artesanato, tabaco e tudo o que se possa precisar. Cheira-me que ainda vou passar aqui umas belas horas a deambular e deixar cá uns quantos meticais.
Temo-nos divertido com os nomes dos boteques, tais como – Contra Stress – e de mensagens que põe à porta de casa, em que a melhor até agora foi – Não queira conhecer da minha vida, maneira educada de dizer “Não metas o bedelho onde não és chamado!”
Para terminar e fazer um círculo completo, voltámos para o céu mais brutal que já vi, com mais uns quantos milhares de estrelas a mais do que o “nosso”. Já o começámos a tentar retratar, mas estou sem grandes expectativas. Ainda bem, já que é por estes momentos irrepetíveis que saio do meu país de vez em quando.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Moçambique #2

Maputo, Moçambique
18-04-2012

Só de manhã me falaram do que são os sons da noite africana. E em Maputo são muito softs, os verdadeiros são na selva, os que nos esperam. O desta noite era um som mecânico, bem audível e agudo que vim a saber ser dum pássaro. Não sei que pássaros têm eles aqui, mas o pobre deve andar sempre num estado de transe para se conseguir ouvir durante tanto tempo.
Estava curiosa em saber como seria a comida aqui, é esse o meu pecado maior, a gula! O mata-bicho – vulgo pequeno-almoço – foi bastante tradicional, com torradas e café com leite mas com marcas que os nossos colegas dizem ser da infância deles, como o chocolate em pó Milo. Não tão tradicional foi o prato que o Frei Vítor nos ofereceu a provar – abacate esmagado com casca e sumo de laranja. Provei e por aí fiquei. O almoço inclui galinha, legumes cozidos e uma feijoada de feijão branco super saborosa, para além de fruta como a papaia e banana. E até há vinho e cerveja! Está salva a pátria.
De manhã, demos umas voltas de carro com o Frei Evódeo, o responsável da casa onde estamos, para ter uma ideia geral de Maputo. As ruas são todas muito planas, com um travo a Nova Deli, devido às influências inglesas, separadas por um passeio a meio, e fiquei surpreendida por ver que os riquexós são iguais. Não esperava encontrar o banco Millenium, os cafés Delta e a Galp, nem nomes tão bonitos como Tomás e Henrique. Nem isso nem lojas de indianos a vender vinho alentejano ou tanto nome de rua “revolucionário” como Karl Marx, Mao Tse Tung ou mesmo Kim Il Sung.
Visitámos a antiga casa dos pais do nosso companheiro de viagem Carlos, que depois da independência, a 25 de Junho de 75, a deixou aos seus empregados que a transformaram numa serralharia. Fomos também à Igreja principal de Maputo; a duas casas lindas e muito cinematográficas mesmo ao lado, uma delas construídas pelo Eiffel (em metal…); a marginal, que muito faz lembrar a do Rio de Janeiro, com o Índico no seu melhor e casas paradisíacas à frente plantadas; e, em aspectos mais mundanos, comprámos um cartão SIM que baixa consideravelmente os custos de comunicação com a terra-Mãe e os que lá ficaram.
A primeira grande surpresa viria mais tarde, quando guiámos mais de uma hora para ir visitar quatro irmãs Clarissas, de Santa Clara de Assis, com os quais os Franciscanos têm uma relação especial. O caminho para lá foi o primeiro verdadeiro contacto com esta realidade, com gente a vender desde mangas a partes de bicicletas à beira da estrada, plantações de mandioca e milho, uma mata verde gloriosa (achava que era tudo tão mais seco!) que depois se transforma em montanha com vales de perder de vista. Mas voltando às irmãs, estas vivem lá apenas há um ano, na cidade de Namaacha, três espanholas e uma moçambicana. Estivemos com elas um bom bocado, em que pudemos contar o porquê da nossa vinda e futura estadia em Inhambane mas, principalmente, pôr-lhe todas as questões que quiséssemos.
Descreveram-nos o seu dia-a-dia, a começar às 5:30 com três horas de orações e leituras até ao pequeno-almoço. Falaram-nos da sua caminhada até se encontrarem naquele local, que consideram ser a sua vocação, e que parte também do ser missionário. E qual é a diferença entre estarem aqui, longe de tudo e todos ou em Espanha, se estão em clausura de qualquer maneira? Responderam que era necessário que este povo sentisse que também estava incluído nas suas orações e que podem recorrer a elas sempre que precisarem. 
Além de rezarem e fazerem adorações, também fazem trabalhos manuais que vendem e, por vezes, oferecem umas às outras nos dias de aniversário. Foi curioso ficar a saber pequenos pormenores das suas vidas. Têm que cortar o cabelo quando entram para o mosteiro; uma vez entrando num, devem morrer lá; usam uma portinhola para comunicar com o exterior; e apenas nos recreios podem conversar umas com as outras. O que mais me tocou foi o sorriso largo e o carinho com que nos receberam pois sentem que estarem connosco é também uma forma de estarem com Deus e é para isso que vivem. É preciso sentir mesmo um chamamento para viver uma vida que a maioria de nós acharia impensável mas que elas sentem, e conseguem transmitir, não poderia ser mais completa. Isto não deixa de me intrigar e fascinar ao mesmo tempo. Elas são como que o pulmão da Igreja, diziam – alguém tem que manter a oração e a comunicação com Deus vivas.
 No outro extremo, e sinto que isso é grande parte desta cidade, existem sítios como o Hotel Polana que nos transportam para o que em tempos terá sido palco de festas impensáveis e grandes extravagâncias. É dos hotéis mais bonitos que já visitei, consegue manter um estilo clássico e sóbrio, mas ao mesmo tempo imponente. Aí estivemos a beber um copo acompanhado com cajus torrados e não deixo de me sentir culpada por saber que faço parte do 1% que ignorantemente consideramos serem a maioria. Que é difícil imaginar por aquilo que a família do rapaz que nos serve já passou. E mais difícil ainda é saber as tentativas fracassadas que já houve para isso mudar e se alguma vez terão sucesso.

Moçambique #1

Maputo, Moçambique
17-4-2012

Estou em África. Nunca me imaginei poder dizê-lo aos 22 anos. 22 anos, 2 meses e 2 dias.
Estou em África, depois de ter vindo da Índia, outro sítio que é a viagem de uma vida. Ele há gente com muita sorte, não há?
Viemos em linha recta pelo continente africano desde Lisboa, em dez horas, apesar da diferença horária ser só de uma. Isto traz-me um grande alívio pois apercebi-me, há pouco tempo, que o jet lag e os seus efeitos maliciosos me adoram – mais especificamente as insónias – e o meu corpo e cabeça simplesmente não funcionam quando precisam de descansar.
Saídas do avião, nada me parece completamente estrangeiro. Olho em volta e vejo frases publicitárias como “Eu sou daqui” e pessoas que falam a minha língua. A nossa língua, que para mim, e não sou a única, é a minha pátria. Talvez por isso tenha um instinto que me vou sentir bem por aqui. Por outro lado, a humidade faz-se logo sentir por baixo das roupas demasiado quentes, apenas apropriadas para donde viemos, e que ainda mantemos, pois a ameaça de mosquitos paira nos nossos cérebros com tantos avisos vindos de casa; o tom de pele maioritário não é o meu; e há um cheiro adocicado e queimado a que provavelmente já me habituei passadas algumas horas, estando prestes a ir dormir. Estes são os sinais de chegada que não estou em casa e por essa mesma razão tudo vai passar muito rápido. É sempre assim. E tudo o que era novidade se torna “normal” (que palavra obscena!), o que era estranho se entranha (segunda referência pessoana, eu sei, vou tentar controlar-me) e daqui a nada esqueço-me que este sítio é único e estes momentos preciosos.
À saída do aeroporto, somos recebidos por um Frei Franciscano, muito novo, com os seus 30 anos, com um sorriso muito bonito e um riso contagiante que nos leva até à casa onde vamos dormir nas primeiras duas noites. Fico muito feliz por ver famílias reunirem-se, todos com cores tão diferentes. Para mim, é isto a civilidade e o que torna um país desenvolvido, mais do que estradas planas ou edifícios grandiosos. Dois cenários, esses, que não encontramos no caminho – as casas inclinam-se para o que em Portugal seria considerado uma barraca, com o que também vi na Índia de pinturas com cores muito vibrantes, na maioria a anunciar uma rede telefónica, uma bebida ou mesmo um detergente. A condução é à inglesa e a cidade pára às 22:30 já que o dia cá começa também muito cedo.
A casa Franciscana faz-me lembrar o colégio onde andei durante 5 anos e o cheiro também condiz. As mensagens de “Paz e Bem” imperam, com fotografias do Papa João Paulo II, que cá esteve. Oferecem-nos uma ceia onde a galinha é rainha, com arroz, batata, cenouras cozidas e mandioca. Provo esta última com um bocadinho de azeite – sabe a uma mistura de batata-doce sem a doçura, castanha sem ser tão intensa mas muito saborosa. Já me disseram que é esta raiz que há em abundância e que vai passar a ser nossa companheira. Óptimo!
Neste momento, escrevo no quarto onde estou sozinha, vizinha da Sofia e da Joana que ficaram juntas e, mais uma vez, sinto-me bem. Gosto muito deste ambiente de simplicidade compensada com ternura e quero viver a minha “experiência missionária”, como fala o Frei Vitor, e não estar aqui de maneira diferente dos que cá vivem. Sinto-me acompanhada por pessoas de bem, segura e em paz. Que mais se pode querer?